terça-feira, 20 de setembro de 2011

Iniciativa popular legislativa - origens, características, desafios

Meus caros,
o meu livro "Processo Legislativo Constitucional" está no forno. Deve sair em meados de outubro!
Posto agora, a título de "degustação", o capítulo sobre iniciativa popular legislativa.
Divirtam-se, e bons estudos!!!

1. Considerações gerais

É um instituto da democracia semi-direta1. Configura-se como o direito de que dispõem os cidadãos de propor um projeto de lei para a apreciação do Poder Legislativo.
Perceba-se que não há garantia de que o projeto será aprovado. Não. A garantia é de que o Congresso delibere sobre o projeto, como entender de direito. Por isso, não é um exercício da democracia direta, em que o povo vota diretamente as leis, mas do modelo semi-direto de democracia, em que as leis são votadas por representantes do povo, mas este, em alguns momentos, participa diretamente da vida política.
Como observa Adriano Sant'Ana Pedra:
“(...) não há obrigatoriedade na aprovação, por parte dos parlamentares, do projeto apresentado pelo povo. O que existe é tão-somente o dever de apreciação. Todavia, quanto maior for o número de eleitores que assinar o ato, mais difícil será a rejeição do projeto pelos parlamentares. Mas infelizmente, apesar da grande mobilização necessária para recolher o número mínimo de assinaturas, a Constituição brasileira sequer estabelece um prazo para que o Congresso aprecie o projeto de iniciativa popular, como faz a Constituição argentina (artigo 39)”2.

Em termos cronológicos, a figura da iniciativa popular surgiu, no Brasil, com a Constituição de 1988. E, apesar da recente introdução em nosso ordenamento constitucional, já recebeu diversas críticas. Realmente, Manoel Gonçalves Ferreira Filho chegou a afirma trata-se de um “instituto decorativo3, tal a dificuldade de pôr em prática os requisitos exigidos para a apresentação de um projeto em tais condições4.
A história recente mostra isso. Obviamente, o principal empecilho à utilização cotidiana dessa prerrogativa popular é o número de assinaturas necessárias. Talvez espantados com a adesão dos cidadãos ao instituto da Emenda Popular, prevista no Regimento Interno da Constituinte, os elaboradores da Constituição acreditaram que toda aquela mobilização pudesse se refletir na prática constitucional posterior5. Com isso, previram requisitos praticamente intransponíveis para a propositura de um projeto por iniciativa dos cidadãos (art. 61, §2º).
Tanto que, até hoje, 22 anos depois de promulgada a Constituição, apenas dois projetos de lei de iniciativa popular (apresentados com tal natureza) foram aprovados6. Apenas cinco vezes os cidadãos se utilizaram da iniciativa popular perante a Câmara dos Deputados. Ainda assim, dois projetos não atingiram o número mínimo de assinaturas e necessitaram da subscrição de um Deputado, o que, de certa forma, desclassifica a iniciativa como popular7.
Advirta-se, porém, que esse problema não é exclusividade brasileira. Na Itália, por exemplo, “somente uma vez (...) chegou ao Parlamento iniciativa popular de uma nova lei”, como noticia Manoel Gonçalves Ferreira Filho8. Isso se deve ao art. 71, segunda parte, da Constituição Italiana, que exige nada menos que 50.000 eleitores para a proposição de um projeto de lei perante o Parlamento9. Trata-se de uma porcentagem, perceba-se, muito maior em relação ao total do eleitorado, em relação ao que é exigido no Brasil. Na Áustria, exige-se a adesão de 200.000 eleitores!10
No caso brasileiro, a dificuldade é tão grande, que a Câmara dos Deputados resolveu minorar o problema criando uma comissão para receber sugestões de projetos e apresentá-los em nome da comissão: é a CLP (Comissão de Legislação Participativa):

Visando criar um canal alternativo para a participação popular nos trabalhos legislativos, a Câmara dos Deputados, em 2001, instituiu a Comissão de Legislação Participativa, órgão permanente da Casa destinado a examinar a dar parecer sobre sugestões de iniciativa legislativa recebidas de associações e órgãos de classe, sindicatos e entidades organizadas da sociedade civil. Dispondo de iniciativa legislativa como qualquer outra comissão parlamentar, a Comissão de Legislação Participativa, quando verifica que uma sugestão apresentada atende às condições mínimas para tramitar, adota-a, formulando e apresentando o projeto à Casa como sendo de sua autoria, de forma a viabilizar a respectiva tramitação.”11.

Tal modelo tem-se disseminado por todo o país. Como observa Vogel12:

já contam com CLPs as cidades de Campinas, Campos do Jordão, Santo André, São Bernardo do Campo, São José dos Campos, São Paulo, Guaratinguetá, Americana e Bebedouro, no Estado de São Paulo; Conselheiro Lafaiete, Unaí, Uberaba e Juiz de Fora, em Minas Gerais; Curitiba e Tibagi, no Paraná; João Pessoa, na Paraíba; Manaus, no Amazonas; Gravataí, no Rio Grande do Sul; Belém, no Pará e Natal, no Rio Grande do Norte”.

Isso se dá, obviamente, em virtude dos bons resultados obtidos pela Comissão federal. O mesmo autor alerta que, desde a criação até agosto de 2006, a CLP já recebeu 424 sugestões, das quais 135 já foram transformadas em projetos de lei13. Embora não haja estatísticas sobre quantas sugestões efetivamente originaram leis, não são números desprezíveis.
Observe-se, por outro lado, que a iniciativa popular (na Constituição Federal) é de leis, iniciativa popular legislativa. Sem embargo da posição de José Afonso da Silva, a doutrina majoritária considera que não pode haver, por exemplo, iniciativa popular de emendas constitucionais (o rol de legitimados é taxativamente previsto no art. 60) ou de decretos legislativos ou resoluções. A iniciativa popular é de leis (ordinárias ou complementares)14.

                     1.1. Iniciativa popular e o paradoxo da democracia

Vale também anotar, com Fabrício Sarmanho, que o fato de um determinado projeto de lei se proposto por meio de iniciativa popular não significa que seja necessariamente bom, ou adequado, ou mesmo compatível com a Constituição. Realmente, se é verdade, por um lado, que todo o poder emana do povo, também o é, por outro, que a supremacia da Constituição impõe o respeito ás normas da Carta Magna15.

Tem-se aqui um dos verdadeiros paradoxos da teoria constitucional atualmente: a tensão entre a vontade popular e as disposições da Constituição. Se todo o poder emana do povo, porque este não pode alterar como quiser a Constituição? Por outro lado, se a Constituição puder ser desrespeitada ao bel-prazer das maiorias populares (e eventuais!), para quê deve existir?
Vale transcrever as inquietações que expostas por Canotilho:

“A Constituição entendida como um conjunto de regras vinculativas tem sido confrontada quer com o paradoxo da democracia quer com o paradoxo intergeracional. John Elster formulou estes paradoxos em termos agora considerados clássicos: cada geração quer ser livre para vincular as gerações seguintes mas não quer ser vinculada por seus predecessores.
O paradoxo da democracia e o paradoxo intergeracional conduzem mesmo a duas posições teoréticas substancialmente distintas. Radicalizando estas posições podemos falar de teorias democrático-representativas puras e de teorias constitucionalistas puras. (…)
A divergência básica radica na forma de proteger estes direitos e os bens constitucionais a eles inerentes. Os ―democratas puros acreditam na primazia do autogoverno democrático e no processo político democrático como a forma de assegurar a protecção das liberdades e direitos das pessoas. Os ―constitucionalistas tomam o processo político como base das políticas em relação aos direitos, mas o processo político não é suficiente para se avaliar a justeza dessas políticas”16.

Aliás, nunca é demais notar que o fato de um projeto ser proposto por iniciativa popular não significa que represente a vontade da maior parte da população.

2. Iniciativa popular em âmbito federal

Para propor um projeto de lei perante a Câmara dos Deputados, é preciso que a proposição seja subscrita por 1% do eleitorado nacional, distribuídos em pelo menos 5 unidades federativas (Estado ou DF), e com pelo menos 0,3% do eleitorado de cada um deles (art. 61, §2º).
Imaginemos o seguinte quadro:


Estado
Eleitorado
SP
15.000.000
RJ
10.000.000
RS
8.000.000
PB
3.000.00
DF
3.000.000
Total do Brasil
150.000.000


Nessa situação, um projeto de lei de iniciativa popular teria que ter assinaturas em pelo menos cinco Estados (imaginemos os cinco Estados acima). Seriam necessárias, então, as seguintes assinaturas:


Estado
Mínimo necessário de assinaturas
SP
450.000 (0,3%)
RJ
300.000 (0,3%)
RS
240.000 (0,3%)
PB
90.000 (0,3%)
DF
90.000 (0,3%)
Total do Brasil
1.500.000 (1%)


1.3. Iniciativa popular em âmbito estadual e municipal

Poucos lembram, mas é preciso ressaltar que a Constituição Federal previu a iniciativa legislativa também em âmbito estadual (art. 27, §4º17) e municipal (art. 29, XIII18).

1Como já decidiu o Supremo Tribunal Federal: “Além das modalidades explícitas, mas espasmódicas, de democracia direta - o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular (art. 14) - a Constituição da República aventa oportunidades tópicas de participação popular na administração pública (v.g., art. 5º, XXXVIII e LXXIII; art. 29, XII e XIII; art. 37 , § 3º; art. 74, § 2º; art. 187; art. 194, § único, VII; art. 204, II; art. 206, VI; art. 224)” (STF, Pleno, ADIn 244/RJ, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 31.10.2002, p. 19).
2PEDRA, Adriano Sant'Ana. Participação popular no processo legislativo. In: Revista de Direito Administrativo e Constitucional. Belo Horizonte, n. 27, ano 7 Janeiro 2007.
3 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislativo. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 208.
4Friedrich Müller chega a propor “a reforma da iniciativa popular e do referendo/plebiscito”. Cf. MÜLLER, Friedrich. Vinte anos da Constituição: reconstruções, perspectivas e desafios. In: Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 2, n. 8, out./dez. 2008.
5No processo constituinte de 1987/88, entre nós, tornou-se um instrumento de ampla aplicação. Neste processo foram formuladas 122 propostas de iniciativa popular, das quais 83 cumpriram as disposições regimentais (mínimo de 30.000 assinaturas e três entidades responsáveis) e foram, como tais, oficialmente admitidas. Tiveram influência na redação do texto constitucional”. CARNEIRO, Nelson, apud AFFONSO, Almino. Democracia Participativa: plebiscito, referendo e iniciativa popular. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília: ano 33, n. 132, out/dez 1996.
6 Um deles, recentemente, teve grande repercussão: foi a LC nº 135/10, conhecida como “Lei da Ficha Limpa”, que criou novas hipóteses de inelegibilidade.
7 Cf. VOGEL, Luiz Henrique. Atualização de Estudo sobre a Participação Popular nas Decisões Legislativas. Brasília: Câmara dos Deputados, 2006, p. 5.
8FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislativo. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 144.
9Il popolo esercita l’iniziativa delle leggi, mediante la proposta, da parte di almeno cinquantamila elettori, di un progetto redatto in articoli”. Numa tradução livre: “O povo exercita a iniciativa de leis, mediante proposta de pelo menos cinquenta mil eleitores, de um projeto redigido em artigos”.
10FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. Cit., p. 145.
11 PACHECO, Luciana Botelho. Como se fazem as leis. Brasília: Câmara dos Deputados, 2009, pp. 30-31.
12 VOGEL, Luiz Henrique. Op. Cit., p. 6.
13 Idem, ibidem, p. 5.
14 Algumas constituições estaduais prevêem a possibilidade de emendas constitucionais estaduais por iniciativa popular. Cf. o amplo levantamento de cada uma delas em: LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2008, p.
15ALBUQUERQUE, Fabrício Sarmanho. Processo Legislativo. Brasília: Vestcon, 2011, p. 20.
16 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, pp. 1449-1450.
17A lei disporá sobre a iniciativa popular no processo legislativo estadual”.
18O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: (...) XIII – iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do Município, da cidade ou de bairros, através de manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado”.

3 comentários:

  1. Professor, não vejo a hora desse seu livro sair, já tem meses que estou esperando ele pra estudar! É ótimo a forma que você escreve. é clara! eu consigo entender tudo, parece que estou "ouvindo" você falar em sala de aula. Você tem o dom de ensinar! é um ótimo professor! Parabéns!!

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  2. Excelente, minha cidade está na iminência dos vereadores aprovarem aumento salarial deles e do prefeito em mais de 50% mesmo numa época de crise financeira e falta de pagamento de salários de professores e outros servidores, particularmente acredito que os mecanismos de democracia direta devem prevalecer sobre a minoria parlamentar, porém com instrumentos de auferimento real de vontade popular.

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  3. Excelente, minha cidade está na iminência dos vereadores aprovarem aumento salarial deles e do prefeito em mais de 50% mesmo numa época de crise financeira e falta de pagamento de salários de professores e outros servidores, particularmente acredito que os mecanismos de democracia direta devem prevalecer sobre a minoria parlamentar, porém com instrumentos de auferimento real de vontade popular.

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