sexta-feira, 5 de setembro de 2014

A "constituinte exclusiva"

Meus caros,
nessa época de propaganda eleitoral, evito comentar temas políticos pela internet (e especialmente pelas redes sociais), porque os ânimos ficam muito exaltados. Aliás, esse é um problema que Cass Sunstein já identificou: na internet, tendemos a ser mais radicais que na vida real, porque não fazemos contato visual e, principalmente, porque geralmente falamos apenas para nossos próprios grupos, num discurso que se retroalimenta...
Pois bem. Mesmo com esses "poréns", não posso deixar de comentar a estapafúrdia e antidemocrática proposta encampada por alguns setores, para que se faça um plebiscito a favor de uma "constituinte exclusiva e soberana" para a reforma política. A campanha já foi lançada (confira em plebiscitoconstituinte.org.br) e teve apoio institucional de alguns partidos (clique aqui - esse foi o caso mais explícito, mas deve haver outros, aliás; a lista completa de apoiadores está aqui). O risco à democracia, como sempre, vem travestido de "popular".
Mas por que essa proposta é ruim?
Primeiro, porque é juridicamente impossível. "Constituinte exclusiva" é uma contradição em termos. Ou é exclusiva (limitada), e aí é uma mera emenda constitucional (só que feita por quem não tem autorização constitucional para isso), ou é uma verdadeira constituinte, e aí será soberana e juridicamente ilimitada - não seria, portanto, exclusiva, podendo alterar qualquer ponto da CF. 
É isso que queremos? Derrubar, na prática, uma Constituição que venceu o autoritarismo e trouxe direitos e liberdades individuais, sociais, difusos e coletivos?!?
Em segundo lugar, a proposta é desnecessária. Todas as propostas de reforma política - sem entrar no mérito se são boas ou ruins - podem ser feitas por mera Emenda Constitucional, ou até por lei ordinária! Nada do que se pretende alterar é cláusula pétrea (a não ser que queriam abolir o voto direto, secreto, universal e periódico). Quer ver? Voto facultativo - pode ser feito por emenda. Extinção das coligações em eleições proporcionais - por ser feito por lei ordinária, basta alterar os arts. 104 e seguintes do Código Eleitoral. Voto distrital - pode ser feito por emenda. Lista fechada - pode ser feita por lei ordinária ou, na pior das hipóteses, por emenda. Financiamento público exclusivo - pode ser feito por emenda. Então, qual a necessidade de se fazer uma "constituinte"? por que os eleitos não querem mudar? Certo, e se houver eleições para essa "constituinte", quem garante que os eleitos quererão mudar algo? Ou os "eleitos" serão escolhidos por qual critério?
Em terceiro lugar, a proposta é antidemocrática. Só se legitima uma constituinte em três situações bem definidas: a) surgimento de um novo país (como a Áustria em 1920); b) revolução (como a redemocratização no Brasil, em 1985-1988); ou c) golpe de estado (como o golpe do Estado Novo, em 1937). Não vejo surgir um novo Estado, nem vejo uma revolução social exigindo uma nova Constituição. Só resta a última justificativa... Coincidência ou não, a proposta surge num momento em que políticos que estão há muito tempo no poder correm o risco de perder as eleições... "Já que eu perco a eleição nesse sistema, vamos mudá-lo!". Não vi esses partidos que agora apoiam a "constituinte" reclamando do sistema político quando ganharam as eleições...
Em quarto lugar, a proposta é perigosa. A Presidente Dilma chegou a levantar a hipótese de uma constituinte exclusiva em 2013, logo após as manifestações de rua (em que, salvo engano, não foi pedida uma nova constituição...), mas o Vice-Presidente, Michel Temer, explicou o grau de maluquice da proposta. Agora, o projeto vem pior ainda: fala-se em uma "constituinte exclusiva E SOBERANA". Ora, ainda que a constituinte exclusiva fosse possível, o que seria seu objeto? Apenas a reforma política? Mas o sistema político está intrinsecamente ligado a direitos fundamentais, como liberdade de imprensa e de expressão. Não demoraria a surgir - se é que já não surgiu - alguém dizendo que, para fazer a reforma política, é preciso antes "regular" e "democratizar" a mídia (que, em algumas situações, pode significar, na prática, censura) e restringir a liberdade de expressão...
Em quinto lugar, cabe exclusivamente ao Congresso Nacional convocar plebiscito (CF, art. 49, XV). Logo, o plebiscito não pode ser convocado por iniciativa popular (o "movimento" já tem até urnas e votação via internet, em que a opção "sim" já vem pré-marcada!). Ah, mas esse seria um ponto que também seria alterado com a constituinte exclusiva, por certo...
Enfim. Tudo pode parecer lamúria de alguém que não simpatiza com determinadas ideologias políticas - o que, de resto, é totalmente legítimo, embora hoje, no Brasil, criticar determinados partidos seja identificado como elitismo, como se algum partido fosse o "legítimo representante" do povo... Mas não é. Para um jurista, é muito triste - é deprimente - ver o pouco caso que fazem da Constituição, querendo fazer um monstro chamado "constituinte exclusiva" por motivos de mera (e da mais baixa) conveniência política.
Faço e farei campanha contra qualquer proposta que queira revogar, total ou parcialmente, nossas conquistas democráticas. Por conta disso, não pude deixar de fazer esse desabafo e esse alerta. Nunca pensei chegar a esse grau de alarmismo, mas acho - espero estar errado - que nossa democracia só não corre riscos mais sérios porque não veja na população muito apoio a essa iniciativa.
No mais, bons estudos!