segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Ativismo Judicial x Reforma Legislativa

Meus caros,
publico aqui no blog, em primeiríssima mão, resumo da palestra que ministrei dia 24/8, na VI Jornada Jurídica da Faculdade CEST (São Luís-MA), a convite dos ilustres professores Rodrigo Lago e Carlos Eduardo Lula.
O link para a matéria no site do CEST: http://www.cest.edu.br/noticias/noticias26082011/noticia01.html
Espero que gostem do texto.

ATIVISMO JUDICIAL VERSUS REFORMA LEGISLATIVA. LIMITES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E SEPARAÇÃO DOS PODERES NA ATUALIDADE
João Trindade Cavalcante Filho

Senhoras e senhores, boa noite!
O Poder Legislativo fracassou.
Eis uma afirmação fácil, quotidiana, quase um chavão, um lugar-comum. E – complementa-se – o Poder Legislativo fracassou, assim como o próprio sistema representativo, de uma maneira irreversível.
Realmente, como defender a legitimidade de um Poder Legislativo que praticamente abdica de sua função – típica – de fiscalizar o Executivo e, no momento de legislar, brinda-nos com pérolas, como a Lei que “Institui o Dia Nacional da Baiana de Acarajé”?!? Pasmem, não se trata de força de expressão. Essa Lei existe mesmo! É a Lei nº 12.206/10!
Como argumentar em defesa de um Congresso que tem um semi-analfabeto na Comissão de Educação, um réu por formação de quadrilha presidindo a Comissão de Constituição e Justiça, e um Presidente da República que foi cassado por corrupção integrando a Comissão de Reforma Política? Como?
O Legislativo perdeu a representatividade, a legitimidade e a relevância política. E – complementa-se – como não há espaços vazios em política, esse espaço há-de ser ocupado por alguém. E esse alguém tem sido o Judiciário.
Pergunte-se a uma mãe cujo filho sofre de doença grave e, mesmo assim, não consegue internação em um hospital público. Em quem ela confia para resolver sua urgente situação? No Executivo, ineficiente? Ou no Legislativo? Provavelmente o último fio de esperança dessa mãe reside na expectativa de que uma ordem judicial garanta ao seu filho um leito salvador...
Apesar de tudo isso, não obstante essa depreciativa ideia que hoje temos do Poder Legislativo, sua importância não é desprezível, nem pode ser ignorada.
É inclusive contraditório ver como se desanca a atividade do Legislativo, mas os lobbies e grupos de pressão não deixam de rondar o Parlamento, em busca da aprovação deste ou daquele projeto que pode movimentar cifras incontáveis; os grupos ambientalistas não param de procurar os Parlamentares para cobrar a tomada de determinada posição; os sindicatos não pensam – nem em sonho – em deixar de acompanhar com lupa todas as tramitações de qualquer proposição de interesse da categoria. Veja-se, por exemplo, a discussão acalorada e recente sobre a aprovação do novo Código Florestal.
Vários teóricos tentam resgatar a legitimidade do Parlamento, indicando-o como a sede natural e autorizada para que o debate político – pluralista e livre – desenvolva-se. É o caso, por exemplo, de Habermas, um notório crítico do chamado ativismo judicial.
Esse é o contexto em que nos propomos a discutir o tema da Reforma Legislativa. De um lado, temos um Congresso enfraquecido e que raramente se dispõe a atender aos anseios, legislativos ou não, emanados da sociedade. De outra banda, vemos um Judiciário avançando cada vez mais sobre as funções dos demais poderes, em resultados que, às vezes, podem ter um efeito positivo agora, mas que abrem precedentes problemáticos, para dizer o mínimo.
Senhoras e senhores, já quase ao final do meu tempo, eis que termino o que viria a ser a introdução. Prometo tentar utilizar os próximos minutos de forma mais produtiva.
Pois bem. Pode-se definir ativismo judicial, em sentido amplo, como a postura do Poder Judiciário de posicionar-se de forma marcante em temas polêmicos, fazendo valer sua opinião, ou vontade, ou interpretação (a nomenclatura fica ao gosto da ideologia de cada um).
Nesse sentido amplo, o ativismo judicial é uma realidade. Se é verdade que a Constituição contemporânea encampa uma série de valores, não pode o Judiciário furtar-se a aplicá-la na resolução de casos difíceis e complexos, os hard-cases, para usar a terminologia de Hart. Mesmo os mais fiéis positivistas – e eu orgulhosamente me incluo nesse grupo – não podem negar esse poder ao Judiciário. O Supremo Tribunal Federal simplesmente tem que julgar casos complexos como pesquisa com células-tronco (ADIn 3510/DF), aborto de fetos anencefálicos (ADPF 54/DF), cotas para minorias étnicas, etc. Não pode a Suprema Corte furtar-se a decidir esses problemas, não só pela proibição geral do non liquet, como por uma questão técnica: o Tribunal Constitucional não pode se negar a decidir temas constitucionais!
Dirão os Pós-Positivistas – o que quer que isso signifique – que a supremacia da Constituição impõe ao Supremo Tribunal Federal termina por promover a constitucionalização de todo o Direito, e o ativismo judicial é inevitável. É preciso, diz-se, um Judiciário “progressista”, ativo. Não consigo concordar integralmente com essa visão. O Judiciário não tem que ser “conservador” ou “progressista”. Tem é que julgar com argumentos técnicos e de acordo com a Constituição! Essa, sim, a Carta Magna, é que pode ser conservadora ou não, por decisão do Poder Constituinte Originário, embora qualquer obra humana seja, por natureza, contingente e mutável.
Que o Judiciário não pode deixar de decidir temas polêmicos é inegável. O problema é como, e em que medida o julgador pode adentrar em determinados campos. É preciso, pois, apontar os riscos e os limites dessa “postura ativa do Judiciário”.
Em primeiro lugar, um problema do ativismo judicial é a legitimidade democrática do próprio Judiciário para tomar determinadas decisões ou adotar algumas posições. Que todos os poderes são políticos, no “bom sentido” da expressão, é algo necessário e até mesmo desejável. Porém, qual a legitimidade que têm, por exemplo, onze Ministros escolhidos pelo Presidente da República, para declarar inconstitucional determinada opção política do Legislativo?
Esse é um verdadeiro paradoxo da jurisdição constitucional e da própria democracia: a tensão entre a vontade popular e as disposições da Constituição. Se todo o poder emana do povo, porque este não pode alterar como quiser a Constituição? Por outro lado, se a Constituição puder ser desrespeitada ao bel-prazer das maiorias populares (e eventuais!), para quê deve existir? O Supremo, contudo, foi escolhido pelo próprio Constituinte como o guardião da Constituição. Mas isso não significa que o Tribunal seja erigido à condição de um super-poder, de um oráculo jurídico.
Outro risco que se corre com o ativismo judicial é a substituição das decisões do Poder Constituinte Originário pelas do Supremo Tribunal Federal. Volta-se à questão primordial: até que ponto das decisões passadas do Constituinte vinculam as gerações futuras, em geral, e o STF, em particular?
A doutrina moderna, a partir da tese da profa. Anna Cândida da Cunha Ferraz, da USP, vem estudando a possibilidade de mudanças informais da Constituição. A possibilidade de mudanças da interpretação das normas constitucionais, sem mudança do seu texto, por meio de um procedimento informal de mudança chamado de mutação constitucional. Eis um fenômeno inegável e perfeitamente compatível com os postulados da moderna hermenêutica. Mas quais os limites dessa mutação?
Vejamos dois exemplos.
O primeiro diz respeito ao mandado de injunção, idealizado pelo Constituinte como um meio de combater o deletério problema das omissões inconstitucionais do legislador. A chamada síndrome da falta de efetividade das normas constitucionais. Só que o legislador nunca regulamentou o inciso LXXI do artigo 5º, e o STF entendeu que a decisão em mandado de injunção possuiria efeitos meramente declaratórios. Caberia ao STF “avisar” ao Congresso a ausência da norma regulamentadora, mas sem resolver o caso concreto. Adotou-se a posição não-concretista.
Porém, a partir de setembro de 2007, a Corte mudou sua jurisprudência, empreendendo o que os ingleses chamam de overruling, a superação do precedente. No julgamento do MI 708, sobre o direito de greve dos servidores públicos, o Tribunal passou a adotar a teoria segundo a qual a decisão em mandado de injunção possui efeitos mandamentais-aditivos: inova no ordenamento jurídico, dá uma regulamentação provisória à matéria, até que seja feita a lei regulamentadora. E mais: essa decisão tem efeitos erga omnes! Foi uma solução inovadora, mas menos radical, por exemplo, do que a proposta do ilustre prof. Walter Claudius Rothemburg, em seu livro sobre omissão inconstitucional e troca de sujeito.
Claro que, contra essa decisão, vários parlamentares discursaram na Tribuna. Afirmavam que o Supremo estaria usurpando a função de legislar. Não. O STF apenas cumpriu seu papel de guardião da Constituição, por conta da omissão do próprio Legislativo. Está achando ruim? Legisle! Não concorda com o teor da decisão? Elabora a lei regulamentadora da matéria! O que não pode é o cidadão fica r a ver navios, por conta da inércia do Legislativo. Isso foi uma mudança de interpretação, mas sem mudança formal do texto. Um exemplo de mutação constitucional.
Mas e no caso recente – e polêmico – do reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares (ADPF 132)?
Sem levar em conta questões metajurídicas (religião ou orientação sexual), uma questão ficou clara, inclusive do voto dos Ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes: o Constituinte Originário, voluntária e conscientemente, reconheceu a união estável entre homem e mulher, justamente para não gerar dúvidas de sua intenção. Mas a questão aqui é: a realidade de 1988 é a mesma de 2011? O rol de entidades familiares contido na Constituição é taxativo ou exemplificativo? Mais ainda: em última análise, pode o STF substituir uma decisão tomada pelo Constituinte Originário?
Particularmente, até entendo que sim. Como diz Karl Loewenstein, a Constituição é como um ser vivo: em constante mutação e sempre trocando influências com o meio ambiente em que vive. Ademais, como afirma de forma lúcida o prof. Inocêncio Mártires Coelho, o verdadeiro legislador não é o que promulga a norma, mas o que a mantém em vigor, sem revogá-la.
Mas o ponto não é esse! Não é uma questão de concordar, ou não, com o resultado do julgamento. É de saber como o Poder Judiciário justificou sua decisão. Sim, senhoras e senhores, porque um dos maiores encargos do ativismo judicial é esse: o dever de fundamentar muito bem suas decisões, e sempre com argumentos jurídicos.
Foi um debate jurídico engrandecedor para o STF? Não, não foi. Um dos Ministros usou o argumento de que o órgão sexual não passa de um “penduricalho” (!). Dá vontade de dizer: “fale apenas pelo senhor, Ministro”... Mas eu pergunto: isso é lá argumento jurídico para uma decisão da Suprema Corte?!?
Muito se disse na mídia que o STF preencheu o lugar que o Legislativo se omitiu de ocupar. Mas e se o Parlamento não tratou do tema justamente por concordar com a opção do Constituinte?
Vejam bem, senhoras e senhores, já me encaminho – finalmente! – para os últimos três segundos de minha palestra, mas quero esclarecer que não estou defendendo esta ou aquela posição sobre o resultado final do julgamento. Mas quero apontar que faltou uma argumentação jurídica! O STF que ser ativo? Que seja! Mas que respeite as regras de hermenêutica, de fundamentação, de decisão!
Afinal, como adverte o prof. Konrad Hesse: “Onde o intérprete passa por cima da Constituição, ele não mais interpreta, senão ele modifica ou rompe a Constituição”.
Queremos aceitar o ativismo judicial, em lugar da reforma legislativa debatida, discutida, mesmo por representantes que – para dizer o mínimo – não são os melhores? Que seja! Mas saibamos os riscos que corremos, até mesmo para que possamos tomar os cuidados necessários. Se não, corremos o risco de abandonar um Legislativo inerte, para substituí-lo por um Judiciário hiperativo.
Muito obrigado!

Da esquerda para a direita: prof. Carlos Eduardo Lula, prof. Rodrigo Lago, prof. João Trindade e prof. Domerval Moreno (coordenador do curso de Direito do CEST) e Rui Pontes


Da esquerda para a direita: professores Rodrigo Lago, Carlos Eduardo Lula, João Trindade, Jaqueline Sena e Domerval Moreno


Um comentário:

  1. Ninguem comentou esse post? Como sempre mais um belo post, que só enriquece nossos estudos! um abraço.

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